Zé Gatão é um personagem que conheci nos anos
90 numa das
minhas inúmeras peregrinações à cidade de São Paulo, e pelo que
sei,
praticamente na mesma data de sua estreia comercial. Vejo o personagem como um
produto daqueles
dias, apesar de que quase tudo tenha mudado na sociedade e
costumes (não
necessariamente para melhor) ao longo desses anos, os temas
abordados continuam
espantosamente atuais.
Como falar de Siroco sem compará-lo as obras
anteriores do
Eduardo? Traçando uma ponte entre os extremos, Siroco e Cidade do
Medo, dá para
notar uma evolução enorme no conjunto da obra do Eduardo nesses
mais de 25 anos.
Siroco entrega tudo que Zé Gatão sempre
representou, mas
melhor e mais bem amarrado, mais conciso, claramente é um espelho
do
amadurecimento do autor.
Os personagens são cativantes, algo que sinto
falta até
mesmo nas grandes obras cinemáticas atuais, é possível sentir a
ojeriza que o
autor tentou passar ao criar por exemplo a gangue dos urubus, com
suas feições
repugnantes e cheiro fétido. O clima tenso e opressor ao adentrar
na nave
infestada por seres aracnídeos.
Como não vibrar com o destino do rato puxa-saco
que servia
ao hipopótamo emissário dos figurões? O hipopótamo é uma
referência explicita da
nossa sociedade real dominada por oligarquias que nunca dão as
caras e
conseguem tudo o que querem através do dinheiro e manipulação.
Apesar das críticas implícitas e explicitas, Zé
Gatão não é
uma obra progressista, o autor deixa claro num breve diálogo
durante a história
as incoerências dessa vertente política, convenhamos,
posicionamento raro de se
ver principalmente no meio artístico, certamente praticado por
alguém que não
teme, ou não se importa mais com o cancelamento automático que
comumente se
segue, talvez por já sofrer com ele.
Siroco segue a tradição dos trabalhos
anteriores e nos
entrega uma deliciosa brutalidade sem pudores, diria até que acima
dos demais, como
sempre é uma violência justificada no contexto da história. Muito
embora as
cenas de sexo dessa vez inexistam, temos agora uma abordagem muito
mais sutil e
romântica, confesso que gostei, são aquelas pequenas doses de
esperança e suavidade
para contrabalancear o mundo duro e mortal de Siroco.
Aliás, quem conhece o Eduardo, mesmo que
virtualmente como
eu, sabe que ele é um cara temente a Deus, extremamente educado,
contido e
culto, quando leio Zé Gatão não posso deixar de ter um sorriso no
canto da boca
imaginando o contraste entre autor e obra, não tenho dúvidas que
Zé Gatão é
também uma forma de extravasar aquela “boca do lixo” que todos
nós,
independente da classe social, temos internamente.
Não sei se as pequenas mudanças introduzidas em
Siroco foram
propositais, acredito que sim, acredito que o Eduardo quis que as
impressões
deixadas sejam as derradeiras, afinal, tudo leva a crer que Siroco
é uma HQ que
encerra o ciclo de narrativas conexas do Zé Gatão, para minha
tristeza. Sempre
resta a esperança de ainda sermos agraciados com histórias solo
e/ou qualquer
rascunho que o Eduardo certamente tem sepultado em suas gavetas.
Pintura de Guerra é um material adicional
opcional que
entrega muito pelo que foi cobrado. Não costumo ser apreciador de
HQs
coloridas, elas remetem a minha infância onde devorava álbuns,
gibis e
cartilhas como os do Mortadelo e Salaminho, Brasinha, Mônica,
Daniel Azulay,
Ely Barbosa, entre tantos outros, todos coloridos, acabo
involuntariamente associando
o colorido a HQs infantis, mas em Pintura de Guerra as cores
funcionam
maravilhosamente bem, o Eduardo é um mestre da experimentação e
parece ter
usado técnicas não tão convencionais que deixa tudo perfeitamente
harmonizado, são
duas histórias coloridas dos primórdios do Zé Gatão, Pintura de
Guerra é um
primor visual, vários quadros dariam facilmente um poster, embora
sofra de
problemas citados pelo autor na introdução, Right Here Right
Now (entrego
a idade se disser que esse nome me faz lembrar do popular
telejornal? Aliás
pensando bem, dado o enredo, acho que caiu uma ficha aqui hem?)
apesar de curta
e despretensiosa, tem um final inesperado e admito ter gostado
demais. Como bônus temos
um conto e uma entrevista com
o Eduardo. Pintura de Guerra em resumo é uma pequena pérola.
Minha consideração final é que Siroco é aquela
obra que deve
estar na estante de qualquer pessoa que realmente goste de bons
quadrinhos, não
só os fãs do Zé Gatão, um trabalho atemporal, claramente o apogeu
artístico do
Eduardo, um cara que não canso de admirar, principalmente porque
ele é um autor
que entrega um tipo de obra que tanto sinto falta no mundo atual.